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Frei Fernando Ventura dinamiza campanha contra o vírus da solidão #Sorrid-19

03-04-2020
Optimista inveterado e fazedor de impossíveis, Frei Fernando Ventura acredita que “é possível dar a volta” à situação. O sacerdote capuchinho não tem dúvidas de que “desta experiência [pandemia] ninguém sairá igual”. Na sua perspectiva, “este é o tempo de passar do ‘eu’ ao ‘nós’, do ‘eu solitário’ ao ‘nós solidário’”. Para frei Fernando Ventura, “o tempo futuro que aí vem será ‘fatalmente’ o tempo do ser”.

Notícias de Fátima (NF) ‑ Está habituado a trabalhar em cenários adversos. A aprendizagem que tem retirado dessas experiências ajudam‑no a enfrentar/compreender melhor os tempos que vivemos?

Frei Fernando Ventura (Fr FV) ‑ Tenho que agradecer a Deus e à vida as oportunidades que tenho tido de viver junto de comunidades que me ajudaram a viver e a crescer acima de tudo como pessoa, e também como consagrado. Desde o início da minha chegada à vida capuchinha, depois de uma passagem por Lisboa para terminar os estudos, tive o privilégio de servir as comunidades da Baixa da Banheira e do Vale da Amoreira, no Barreiro. Com estas comunidades aprendi a solidariedade e a essencialidade do essencial e dos essenciais da vida. Foi a minha primeira escola de vida como consagrado. Com estas duas comunidades aprendi a viver a pobreza da partilha e a fraternidade construída com “os diferentes”, num ambiente que me fez voltar às primeiras experiências de vida no bairro operário onde nasci. Éramos todos pobres, mas felizes, solidários, sem barreiras nem “peneiras”. Daqui pude partir para “nunca mais voltar” ao conforto acomodado. Daqui pude partir para descobrir o sentido da “consagração”. O meu trabalho tem‑me levado a contactar e a partilhar experiências marcantes na Índia, na Ásia, no Brasil, em África, sobretudo Moçambique e S. Tomé e Príncipe. É a partir daqui que posso “ler” os tempos que passam. É a partir daqui, foi a partir daqui, que percebi sem dúvidas que a vida do “frade” é na estrada. Pela primeira vez o mundo, de repente, experimentou a precariedade da vida e a incerteza do amanhã. Daqui as duas reacções opostas de que estamos a ser testemunhas: a solidariedade entre os “aflitos” e os que se afligem para açambarcar papel higiénico… As minhas experiências de vida têm‑me levado a tocar esta realidade por todo o mundo por onde tenho andado. Há muitos “aflitos” porque outros se “afligem” como se o mundo acabasse amanhã…

 

NF ‑ São tempos difíceis, estranhos… Há pessoas que perderam tudo: trabalho, familiares, capacidade de acreditar… O que tem a dizer a essas pessoas? É possível dar a volta, continuar a acreditar?

Fr FV ‑ A essas pessoas, a todas as pessoas tenho que dizer que estou aqui; temos todos que dizer uns aos outros que estamos aqui. E estes tempos têm trazido testemunhos fantásticos disto mesmo. Quantas iniciativas entre vizinhos – por exemplo, aqui no meu bairro na Senhora da Hora, os vizinhos têm encontro marcado todos os dias às 20h para nos vermos e comunicar alguma necessidade – quantas iniciativas individuais de solidariedade e de comunhão! É possível dar a volta, é inevitável dar a volta, é o tempo de mostrar aos “crápulas do papel higiénico” que o futuro não será deles (e delas), é possível provar que os bolsonaros e os trumps dos tempos que passam não têm futuro. Sairemos disto mais fortes. Desta experiência ninguém sairá igual. De repente, o que eu tenho vindo a dizer por toda a parte – e peço desculpa por me citar a mim mesmo – este é o tempo de passar do “eu” ao “nós”, do “eu solitário ao “nós solidário”. O tempo de provar isto chegou. Está aqui!

 


NF ‑ Há quem diga que este tempo de medo e de incerteza é uma oportunidade para crescermos e para nos tornarmos mais solidários e menos egoístas e individualistas. Concorda?

Fr FV ‑ Concordo plenamente. Nestes tempos tenho recordado Teillard de Chardin, um filósofo infelizmente um pouco esquecido, que falava do processo de humanização como “um processo de espiral ascensional de complexidade consciência”. É este o tempo de revisitar esta intuição teillardiana. De um momento para o outro sentimo‑nos sugados por uma espécie de vórtice que nos arrastou, ao mesmo tempo para dentro e para fora de nós próprios. Um vórtice que sentimos que não dominamos mas que nos arrasta inexoravelmente para a experiência ao mesmo tempo da solidão e da necessidade do “outro”. Isto só pode ter como consequência a curto e a médio prazo a construção a longo prazo de um tempo de mudança de paradigma, um tempo de reequacionamento do(s) (des)equilíbrio(s) entre o ter e o ser. O tempo futuro que aí vem será “fatalmente” o tempo do ser. O tempo do Espírito e dos espíritos, desses que se encontrarão na imensidão do espaço, do espaço do ser onde nos movemos, unidos pelas distâncias que nos unem e pelas diferenças que nos aproximam, sem fronteiras que nos separem, sem “religiões” que nos dividam, sem donos absolutos “do papel higiénico…”. Na hora da dor todos somos um, todos somos gente que partilha a “humanidade” do ser, da fragilidade e da existência. O contágio do vírus há‑de continuar no contágio do sorriso e da fraternidade, sem “bolsonaros”, sem “trumps”, sem “alcochetes”… Numa palavra, sem fanatismos de qualquer espécie.

 


NF ‑ Para finalizar, pode dizer‑nos como é que tem ocupado os seus dias, depois de ter sido decretado o estado de emergência.

Fr FV ‑ Cheguei a Portugal já depois da declaração do estado de emergência, vindo de S. Tomé e Príncipe onde fui também para lançar a primeira pedra da Casa Betânia ao serviço dos idosos da Ilha do Príncipe (este vai ser o meu desafio para os próximos meses porque o montante em causa é muito alto). Por isso cheguei já com uma série de medidas em curso às quais, obviamente, tive que me adaptar. Na dúvida e para não colocar ninguém em risco, vim até à minha terra natal e estou sozinho na minha casa. Tenho acima de tudo aproveitado para descansar, para estar comigo, para pôr a correspondência em dia e para falar por telefone e por internet com amigos que “nos tempos normais” não tenho tempo para contactar. Tem sido uma experiência para ter tempo para mim e para os outros e para não falhar “às 20.00” ao encontro com os vizinhos à janela e à varanda. No tempo “livre” tenho estado a trabalhar na Campanha “Sorrid ‑19”, para combater o vírus da solidão, do medo e das “caras fechadas” por causa disso mesmo. Trata‑se simplesmente de convidar as pessoas para que nas poucas saídas à rua para as coisas essenciais, não deixem de cumprimentar quem passa e de oferecer um sorriso. Não vai matar o vírus, mas vai matar a solidão…