A inauguração do seu estabelecimento coincidiu com a visita do Papa Paulo VI a Fátima. Como era a Fátima de então? Era uma pequena aldeia?
Fátima para mim ainda é uma pequena aldeia. Embora maior, mas não deixa de ser uma pequena aldeia.
As pessoas conheciam‑se todas umas às outras?
Não havia nenhum casamento nem funeral que nós não soubéssemos. Na altura, não havia jornais, havia o Bronze que dava a volta a Fátima a dizer: “Fulano morreu”. E nós estávamos incumbidos de ir ao funeral. A aldeia era muito pequenina.
Como é que avalia o crescimento da cidade?
Fátima cresceu muito, embora um pouco desordenada. Fizeram‑se algumas asneiras no ordenamento arquitetónico que podiam ter sido evitadas. Depois surgiram alguns planos que permitiram melhorar alguma coisa. Salva‑nos o santuário, felizmente, as obras que fizeram vieram dar uma alma muito grande a Fátima, não só no aspecto espiritual e religioso, mas também pela sua arquitectura. A requalificação da avenida também veio melhorar a imagem da cidade. Mas não se compreende que ainda haja ruas em Fátima, próximas do santuário, sem passeios.
Chegou a participar na vida política da cidade?
Nunca fui muito chegado à política, apenas tive um acto político. Após o 25 de Abril, fui convidado para ser membro da
Assembleia Municipal, aquilo não me agradou nada e vim‑me embora. Estive lá cerca de um ano. Fiz parte de algumas instituições de carácter associativo, nunca liguei à política.
Voltando à sua resposta, disse que esteve ligado a várias associações. Quer especificar?
Fui presidente, secretário, tesoureiro do Rotary Club de Fátima, entre várias obras fizemos o monumento ao peregrino,
actualmente sou membro honorário. A convite do Sr. Prior Manuel Henriques fiz parte algum tempo da Direcção do Centro Paroquial de Fátima. Fui membro da Direcção da Associação de Restaurantes e Hotéis do Centro e, por inerência, também fiz parte da Comissão de Turismo de Leiria. Acompanhei muito a evolução turística. O país tinha várias regiões de turismo, na altura havia sempre rivalidades entre elas, acompanhei tudo isso… Ultimamente, por outras razões, comecei a desligar‑me e enderecei esse trabalho ao meu filho. As regiões têm feito um bom trabalho, e Portugal tem beneficiado muito desse trabalho.
Fátima tem recebido a atenção merecida?
Acho que lhe dão algum interesse, mas só quando lhes convém. Nessas ocasiões, Fátima é tudo e mais alguma coisa. Fátima é uma terra mundialmente conhecida, e nós devemos estar satisfeitos com isso, mas se calhar também não damos o devido valor à riqueza que temos aqui. É a minha opinião. É evidente que os políticos falam do assunto, mas quando se trata de ajudar, não há aquela força anímica para lhe dar o devido valor.
Se fosse concelho, estaria melhor?
Possivelmente, sim. Eu fiz parte do movimento “Pró‑Concelho”, assisti a várias reuniões, dei a minha opinião, era
um grande entusiasta. Temos de ser sinceros, o concelho de Fátima não deixa de ser um concelho pequeno. Muitas instituições usam o nome “Fátima‑Ourém”, as Misericórdias, a própria Escola Profissional… Porquê? Porque Fátima tem um grande peso. No caso do actual concelho, talvez pudessem instalar a sede entre as duas cidades. Mas isso não iria resultar, porque existe sempre aquela rivalidade entre Fátima e Ourém e Ourém e Fátima. Ultimamente tem havido uma coisa muito boa: têm surgido alguns indivíduos de Fátima na Câmara que fazem a ligação entre as duas cidades.
Como antevê o futuro de Fátima?
Fátima vai ser sempre uma terra grande, têm é de criar mais infra‑estruturas. Os mais novos não podem adormecer.
No seu entender, quais são as necessidades mais urgentes?
Fátima já tem o aspecto religioso, mas era bom haver outras infra‑estruturas para que as pessoas que cá vivem se sintam bem. Embora seja católico, não sou obrigado a andar sempre a rezar. Tenho de ter distrações, outros meios, até para os próprios turistas que nos visitam.
Como é que encara a actual pandemia?
Esta situação está a ser má não só para Fátima como para o mundo inteiro. Ninguém esperava esta crise ‑ eu digo crise porque vai haver uma crise que se vai prolongar por mais dois ou três anos. O mundo nunca mais vai ser o mesmo. Há‑de melhorar e compor‑se, mas demorará algum tempo. Há que ter confiança no futuro desta terra. O santuário em si é uma mais‑valia, mas devia haver outras coisas para ajudar a parte religiosa.
O que lhe falta ainda fazer?
Já não tenho a ambição de construir mais, tenho vindo a delegar nos filhos. Eles têm objectivos, que eu tenho acompanhado, vou‑lhes dando algumas dicas. Já tenho 83 anos. Temos de nos render à evidência. Mas ainda bem que chegámos a esta idade com alguma vida.
PERCURSO:
José Coelho Heleno nasceu a 12 de Fevereiro de 1937, na Freguesia de São Mamede, mas a sua vida tem sido passada em Fátima, seguindo as pisadas do pai, que tinha veia para o negócio.
“Os pais do meu pai morreram de pneumónica, a chamada gripe espanhola. Então, o meu pai foi viver para casa de um tio, tio esse que tinha uma padaria”, explica, referindo que o negócio do tio acabou por ditar o futuro do pai. Ao casar, o pai fixou‑se em São Mamede e, passado pouco tempo, instalou‑se em Fátima, mais precisamente na altura em que nasceu José Coelho Heleno.
É o terceiro de oito irmãos. Fez a catequese e os estudos primários e mostrou vontade de prosseguir os estudos, mas a mãe impôs‑lhe uma condição: “Vais para padre!”, ao que ele respondeu: “Não, para padre não vou!”.
A sua apetência era estudar Arquitectura. Desistiu da ideia ‑ só em adulto é que retomou os estudos até ao antigo 9º ano. Começou a trabalhar com os pais que “tinham uma actividade muito grande”. Além da padaria, tinham um talho, uma mercearia e uma pastelaria. Entretanto, adquiriram uma mercearia/ taberna na Moita Redonda, e José Coelho Heleno passou a tomar conta do negócio, onde abriram também uma padaria, que acabou por ser convertida numa pastelaria/confeitaria”.
José Coelho Heleno casou com 25 anos ‑ a esposa Maria Emília é natural da Moita Redonda. Têm dois filhos e cinco netos. Quando casou instalou‑se numa casa construída de raiz, onde está actualmente localizado o Hotel Dom Gonçalo & SPA Fátima, do qual é proprietário, mas continuou a trabalhar na empresa dos pais.
Na altura já demonstrava “alguma apetência” para gerir negócios e, passados dois/três anos, estabeleceu‑se por conta
própria. Abriu um mini‑mercado nas instalações da sua habitação e, em 1967, ano em que o Papa Paulo VI veio a Fátima, abriu um café/restaurante no mesmo local. Da visita papal, recorda “o entusiasmo muito grande” das pessoas, referindo que “os carros eram tantos e os parques eram tão poucos, que durante uma semana ainda havia
carros em Fátima”. Quanto ao negócio, ficou “satisfeitíssimo com a facturação”.
A clientela começou a aumentar e José Coelho Heleno começou a ter dificuldade em gerir o negócio sozinho. Então, desafiou a esposa, que era professora primária, para ir trabalhar com ele. Pediu uma licença sem vencimento e nunca mais voltou a dar aulas. Tem‑se mantido sempre ao lado do marido.
Fotografias: Humberto Magro