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Jorge Perfeito

6 de abril, 2023

OLHAR DE FRENTE – VER DIFERENTE (Crónica para um grande amigo)

Houve uma altura, ainda não há muito tempo, em que o futuro era qualquer coisa de longínquo e julgávamos que teríamos muito tempo pela frente. Depois, como diz o empregado da estação de serviço, interpretado por Tom Waits, no filme de Francis Coppolla “Juventude Inquieta” (Rumble Fish – 1983, enquanto em contra campo, se vão desfolhando folhas de calendário: “O tempo passou sem darmos por isso e começamos a perguntar-nos, quanto tempo nos resta”.

Na altura em que tínhamos muito tempo pela frente, Fátima era uma aldeia donde queríamos sair a todo o custo, para fugir a um certo atraso e ostracismo. Ou se emigrava ou se continuavam os estudos fora daqui. A biblioteca itinerante da Gulbenkian vinha uma vez por mês; havia uma livraria muito razoável, a “Verdade e Vida”, dos padres dominicanos, com livros sagrados e profanos; e a loja do Francisco, onde se vendiam jornais e revistas, nacionais e estrangeiros, e ouvíamos e comprávamos as últimas novidades musicais de todo o tipo, popular, jazz e clássica, e nos colocávamos a par das mais modernas tendências culturais, políticas e sociais, que se passavam pelo país e pelo mundo. Era a nossa tertúlia. O dono da loja, o senhor Manuel, muitas vezes se contrariando a ai próprio, lá acabava por condescender, e deixava-nos ouvir a música que gostávamos, desde que por lá estivesse algum dos seus filhos, que ajudavam na loja. E todos por lá passávamos. Em uma dada altura, para que pudéssemos ouvir com os convenientes decibéis, que incomodavam alguns clientes, decidiu que teríamos de colocar uns auscultadores, daqueles como os dos astronautas, que iam rodando pelas nossas cabeças, enquanto ouvíamos o Dylan, os Beatles, Rolling Stones, e os solos e riffs das guitarras dos Led Zeppelin, Doors, Genesis, do Peter Frampton Comes Alive (esse ouvido até à exaustão). Às vezes havia quem se entusiasmasse demasiado, se abstraísse da pacatez do sítio, e começasse a agitar-se demasiado, a dançar e a debitar solos imaginários em guitarras imaginárias, para grande espanto dos clientes que iam entrando. Eu que o diga, ou o Vítor “Matula”, que ainda deve andar por aí. Nisto, entrava o Dr. Gregório (padre e organista do Santuário), que parava a observar circunspecto, enquanto as irmãzinhas iam sendo atendidas, não sem manifestarem uma contida censura, com desabafos do tipo: “Ai que horror, esta juventude! Onde é que irá parar este mundo com gente assim!”

Essa juventude eramos nós, hoje sexagenários e mais do que isso. O mundo não parou, tendo continuado com as suas crises e guerras, como sempre aconteceu na história, com as gerações que nos antecederam, com idênticas crises e guerras. O mundo parou apenas para o Fernando Egídio, filho da terra, dessa Loja do Francisco, cristalizada na memória do nosso tempo. Amigo e colega, desde os bancos da escola primária até à universidade. Com um percurso profissional e académico brilhante e competentíssimo (apanágio de família), em todos os cargos e funções que desempenhou e exerceu: professor, diretor-geral da educação, secretário de estado, ministro indigitado. A terra vê, assim, partir, mais um dos seus diletos filhos, ficando privada do muito que ainda nos poderia ter dado. Já nos começa a pesar em demasia. E Fátima (Cova-da-Iria), cada vez mais, é um sítio donde já não se é, nem dos que cá estão.

Para o Fernando Egídio, o meu saudoso abraço.

Tenham uma boa Páscoa.

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