Há algumas semanas atrás, o discurso público e político era dominado pelo chavão “salvar o Natal”. O pressuposto é que as circunstâncias históricas que atravessamos põem o Natal em risco. E, sim, de facto há aspectos do nosso modo habitual de viver o Natal ameaçados pela situação de pandemia. Mas o modo sábio de enfrentar as crises é reconhecer nas ameaças oportunidades.
Vamos sentir a falta das nossas reuniões familiares, em que as diferentes gerações e os geograficamente dispersos de uma mesma família se reúnem e se sentam à mesa juntamente e partilham alegrias e esperanças, algumas vezes porventura lutos e dores. Que falta nos vai fazer! Há mais coisas, mas esta é particularmente dolorosa, porque vai ao encontro de um profundo anseio do coração humano: celebrar os laços de pertença. No Natal, em volta da mesa na casa familiar, experimentamos que somos uns dos outros e uns com os outros e uns para os outros. E é este o aspecto da festa mais ameaçado pela situação de emergência que vivemos.
Como pode, então, esta ameaça revelar‑se uma oportunidade para a vivência do Natal? A nossa pertença a uma família concreta é o meio personalizado de realização da nossa pertença à família humana. Poderá o Natal de 2020, ao privar‑nos da doce e inebriante vivência familiar habitual, aprofundar no nosso íntimo uma maior consciência de pertença à humanidade como uma grande família? A situação histórica pede isso porque é isso que nos dá. De facto, a pandemia projecta‑nos dramaticamente para a experiência de que a humanidade é uma só, é um corpo, todos estamos ligados, partilhamos um destino comum tal como habitamos uma casa comum, o pobre planeta Terra.
O desenrolar dos acontecimentos no mundo vai manifestando de forma evidente – basta ver como os mais pobres são os mais atingidos pela doença e suas consequências e, a nível global, o que se passa com o escândalo da diferença no acesso à vacina entre os países pobres e os ricos – que o grande desafio civilizacional que o
futuro dirige à nossa geração através da presente crise é o de assumirmos responsável e consequentemente a humanidade como uma família. O Papa Francisco tem insistido nesta ideia desde o início da crise e desenvolveu‑
a detidamente na encíclica recentemente publicada Fratelli Tutti, um acto de fé na fraternidade entre os homens.
Se, situando‑nos em Fátima e na sua mensagem, aplicarmos a este Natal o grande princípio de elaboração do futuro enunciado pela Senhora na última aparição: ‑ é preciso que se emendem!, então este poderá ser o grande Natal das nossas vidas. Este é o ano para emendarmos o Natal, para o salvar, sim, emendado um aspecto fundamental da sua tradição: corrigir o absolutismo da vivência familiar restrita – os meus, os nossos, a perfeição particularista em volta de uma mesa farta à porta fechada – e alargar o coração às dimensões da inteira família humana de que Deus se fez parte, quando, há mais de dois mil anos já, menino nasceu na noite de Belém e avançou pela história fora a fazer da humanidade uma só família.
Este pode ser o Natal necessário e oportuno para irmos ao encontro dele, do Menino‑Deus, redescobrindo que venerar o seu nascimento implica reconhecer a humanidade como universal família humana, assumindo‑ o como um compromisso de vida, não apenas uma ideia bela mas utópica. É que são tantos e poderão ser tão cada vez mais, ao perto, mesmo ao pé da porta ou até dentro dela, como ao longe, onde quer que seja, os excluídos da experiência da familiaridade humana, os sem nada nem ninguém! Trata‑ se de salvar o Natal, sim, de emendar o Natal: emendar, universalizando, o modo da sua vivência familiar. Que podes fazer?