No berço da democracia, na cidade-estado de Atenas, no século I a. C., a quase totalidade dos cargos políticos eram sorteados. Mas esses mesmos cargos não eram remunerados, o que impedia que os cidadãos mais pobres os não aceitassem, porque durantes dois anos podiam condenar a sua família a morrer à fome. Péricles, encontrou a solução perfeita. Criou as chamadas mistoforias, leis que autorizavam os cidadãos a receber uma remuneração pelo cargo que lhes tinha calhado em sorte. Estava assim resolvido o problema do sustento dos mais desfavorecidos, que podiam agora exercer o seu papel político.
Depois da Revolução Francesa, ainda sem a presença nas urnas das mulheres, os cidadãos escolhiam os seus representantes baseados na conta bancária. Só podiam votar os que tinham um emprego e eram eleitos os mais endinheirados, os que tinham tido êxito na sociedade. Nessa altura, sabia-se claramente em quem cada pessoa ia votar, uma vez que era o cacique local que distribuía os votos aos eleitores, já preenchidos, à entrada das mesas de voto.
No início do século XX, alargou-se o conceito de democracia com a introdução do voto secreto e passaram a poder votar os homens com mais de 22 anos. A pouco e pouco, os países foram alargando o direito de voto às mulheres e a idade mínima passou para os 18 anos.
Este longo caminho de implantação da democracia continua no entanto eivado de problemas. Até porque o conceito de mistoforia foi substituído pela partidarite aguda.
Foi aprovado pela ministra Ana Abrunhosa o novo salário dos presidentes das CCDR, ou seja das Comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional. Como anunciavam os jornais esta quarta feira, estes dirigentes vão ganhar tanto como o primeiro ministro, um total de 5966 euros brutos por mês, a que acrescentam despesas de representação de mais 2386 euros! Se somarmos a este “emprego”, os dos boys do partido que vão ocupar os cargos de assessores e outros cuja utilidade é questionável, não é difícil perceber que a descentralização é apetecível, pois claro. Não para resolver as assimetrias de Portugal mas para pagar principescamente cargos políticos num país em que a maior parte das carreiras profissionais é mal paga (por alguma razão faltam médicos no Serviço Nacional de Saúde), que leva os nossos jovens a “fugirem” para o estrangeiro.
Em 1998, o então Ministro da Administração Interna Jorge Coelho referiu, sem pudor, em entrevista aos jornais, que “a distribuição dos investimentos públicos hoje, não depende de critérios racionais” e que “as decisões são tomadas porque um ministro é mais ou menos amigo de um presidente de Câmara”. Talvez isso ajude a explicar um pouco porque é que o novo quartel dos bombeiros em Fátima, não é prioridade para o Governo.
Não é também de admirar que hoje em dia surja, cada vez mais associado aos cargos políticos, o anátema da corrupção. Que não preocupa grandemente os que são apanhados em esquemas ilícitos de milhares de euros, porque as leis portuguesas os protegem. Com um bom advogado, de recurso em recurso, o prevaricador sabe que dificilmente vai ser julgado. Ou as acusações prescrevem ou quando for a um julgamento efectivo, já o ex-político ou gestor terá morrido de velhice. Nem vale a pena dar exemplos, infelizmente são mais do que muitos.
Se hoje as mistoforias perderam todo o seu sentido inicial de justiça social, infelizmente vivemos cada vez mais uma política segundo a visão do padre António Vieira que, no século XVII, afirmava no seu “Sermão de Santo António aos Peixes”:
“Não só vos comeis [peixes] uns aos outros, senão os grandes comem os pequenos. Se fora pelo contrário, era menos mal. Se os pequenos comeram os grandes, bastara um grande para muitos pequenos; mas como os grandes comem os pequenos, não bastam cem pequenos, nem mil, para um só grande.”