Há 10 anos, o Catar foi escolhido para organizar o Mundial de Futebol. Toda a gente sabe porquê. É um dos países mais ricos do mundo e fácil lhes foi subornar, com milhões de petrodólares, os dirigentes da FIFA. Há, no entanto, um fenómeno extraordinário. Durante estes 10 anos nunca se ouviu uma voz contra, uma voz que questionasse verdadeiramente o que tinha acontecido, que sugerisse um boicote total a este Campeonato do Mundo. Foi preciso esperar pelo fim dos jogos de qualificação, pelo sorteio dos grupos e pela semana que antecedeu a competição, para surgirem as vozes a clamar contra um país que segue a tradição muçulmana, tão contrária a esta nossa democracia.
Em Portugal sempre que se mexe com estes temas sensíveis de culturas diferentes surgem os mais variados grupos de activistas políticos a defenderem que devemos respeitar diferenças e crenças. Curiosamente (ou não) agora não se fazem ouvir. Devem estar entretidos a ver os jogos do Mundial.
Esquecemo-nos também de como os dirigentes desportivos quase sempre fecharam e fecham os olhos a “pormenores secundários”. Vejamos apenas dois exemplos. Os Jogos Olímpicos de 1936 realizaram-se na Alemanha. Era então ditador Adolf Hitler que passados três anos iniciaria a II Grande Guerra. Em 1978, os Jogos realizaram-se na Argentina, durante o período cruel e sangrento de uma Ditadura Militar.
Como diz Miguel Esteves Cardoso “a culpa é de quem aceita trair as regras que considera civilizadas a troco de dinheiro”. Pondo o dedo na ferida acrescenta “o que o Catar pensa de nós é fácil de imaginar: são uns tarados, mas felizmente são corruptos. (…) Quanto é que terão pago? É esta a pergunta. A culpa e a vergonha são inteiramente nossas”. Dos Ocidentais, entenda-se.
E que dizer da Arábia Saudita no campo dos direitos humanos? Ainda há bem pouco tempo foi morto um jornalista opositor ao regime, esquartejado aos bocados, para esconder o seu cadáver. E os direitos das mulheres neste país? São diferentes dos do Catar? E o governo do Irão cuja polícia dita dos costumes matou uma jovem apenas porque tinha o véu mal posto e que neste preciso momento pratica uma repressão brutal que já matou centenas de jovens? Ou como diz o treinador deste país no mundial, o português Carlos Queirós, “só me interessa falar sobre futebol”?
Que raio de hipocrisia é esta que ataca apenas um país, esquecendo as atrocidades de outros países que também estão presentes neste mundial dos petrodólares?
O Presidente da República justificou “interesse nacional” para a viagem ao Catar. Acrescentou depois “apoio à selecção”. Como também não soava muito bem, surgiu a ridícula “defesa dos direitos humanos”. Segue-se nesta parada despesista e sem nexo o Presidente da Assembleia da República no segundo jogo e, no terceiro jogo, o primeiro ministro. A pergunta óbvia é: para quê? Quais os resultados práticos que odemos retirar destas viagens?
O presidente da Câmara de Leiria (e bem) criticou a falta de um representante do Governo pelo menos no jogo da final do Mundial e Europeu de andebol de cadeira de rodas, em que “curiosamente” fomos campeões. Feito notável de quem tem de superar todos os dias as suas deficiências físicas. Foi comovente ver como estes nossos atletas se emocionaram a cantar o hino, vibrando com a conquista do título para Portugal.
Poderíamos juntar o Campeonato Mundial de remo, o de saltos com trampolim etc, etc. O problema é que são modalidades onde, apesar de ganharmos títulos mundiais, não dão grande estatuto a quem nos governa. Porque é aí que está o busílis da questão, não se trata de apoio ou de defesa dos direitos humanos mas sim e apenas de visibilidade política.
O grande problema é que, hipocritamente, apenas estamos a aplicar o velho provérbio português, em que “diz o roto ao nu: porque não te veste tu?”
Em Portugal proliferam os casos de mão de obra imigrante escravizada. A PJ na madrugada da quarta-feira da semana passada, no Alentejo, capturou uma enorme rede mafiosa (35 pessoas) que actuava às claras. As condições em que viviam os trabalhadores explorados era cruel e desumana. Quantas mais haverá? Para não falamos já do aumento da violência doméstica no nosso país. Em média, há 2.302 participações por mês, 75 por dia, três por hora. Afinal, como diz Miguel Sousa Tavares, “o Catar fica aqui tão perto…”