Na última edição do jornal Expresso, João Duque escreveu uma crónica sobre a economia portuguesa, com o sugestivo título de “Come bacalhau, Ezequiel”. Este professor do ISEG recria uma história cómica que não resisto a transcrever em parte: “Na barraca, o pai incitava, a plenos pulmões, sugerindo aos vizinhos que a manja era boa e farta: come bacalhau, Ezequiel! Come bacalhau, rapaz! Porém o pobre garoto, que não conseguia apanhar mais que uma estreita linha do fiel amigo muito escondida entre bastas lascas de cebola, respondia, amargurado: Ó pai, não quero mais cebola!”
A propósito da eutanásia, a deputada socialista Isabel Moreira defendeu esta semana, na TVI, que “a vida humana não é um direito absoluto”. Curiosamente, a nossa constituição diz que a vida humana é inviolável (artigo 24º).
O certo é que este debate mistura duas temáticas diferentes. Uma coisa é o suicídio assistido, outra a eutanásia, o que levanta uma questão muito séria e ética – Deve ser colocado nas mãos do Estado o poder de matar? Aldous Huxley antecipou este tema no seu livro Admirável Mundo Novo, onde descreve um mundo de “gente feliz”, sem liberdade de escolha, um mundo em que a humanidade se perdeu num projecto higienista (leia-se eutanásia) do fim do sofrimento.
O certo é que os nossos brilhantes deputados limitam-se a discutir o “bacalhau” esquecendo-se que o verdadeiro problema é a “cebola”.
Quantas pessoas têm acesso no nosso país aos cuidados paliativos? Menos de 20% da população, segundo dados oficiais da Organização Mundial de Saúde. Até porque o Serviço Nacional de Saúde tem um défice de 430 médicos e mais de 2000 enfermeiros (dados de 2018).
Dizem os defensores da eutanásia que todos têm o direito de morrer com dignidade. Totalmente de acordo. Talvez seja por isso que em Portugal para além do testamento vital, há a norma médica de oposição à distanásia, ou seja o não haver o prolongamento inútil de tratamentos.
Não estaremos a abrir uma caixa de Pandora com a aprovação da eutanásia, em que o essencial da assistência médica passe a ser ajudar a morrer e não a viver? O grande, o verdadeiro problema que ninguém tenta resolver é que vivemos numa sociedade que abandona os idosos. Não há tempo, nem paciência, nem dinheiro para os doentes, para os mais frágeis em Portugal.
A rede nacional de cuidados integrados também não consegue ter resposta para os internamentos sociais. Há idosos abandonados vários meses nos hospitais devido à inércia de um Estado que os devia proteger, em nome da tal dignidade tão propagada pelos defensores da eutanásia.
Esta hipocrisia estende-se ao mundo do futebol. Parece que só agora é que se descobriu que há racismo e violência nos palcos desportivos. O problema é que o Vitória de Guimarães tem 11 jogadores com a mesma cor do Marega, do Futebol Clube do Porto. Portanto, trata-se de racismo selectivo, até porque o dito Marega já jogou no Guimarães, onde era acarinhado pela “agora” racista claque do clube.
Sem dúvida que há que ter uma resposta dura, banindo a violência e o racismo dos estádios. O problema é que as claques dos outros clubes são iguais. Basta ver como se comportam quando estão nos estádios de futebol.
Os nossos diligentes políticos e comentadores limitam-se a condenar apenas este caso mediático, despoletado pela coragem do jogador do Porto que abandonou o relvado. Tudo o resto é esquecido. Franklim Foer chama a esta incoerência dos (ir)responsáveis desportivos a “intolerância sonâmbula”.
A toda esta gente “importante” que nos incita a comer bacalhau, apetece dizer: “deixem de ser hipócritas, estou farto de comer cebola”.